A ideia é genial. Uma nação milenar decide mostrar a sua ligação à terra através de suas moedas. Assim, Israel resgatou a menorá do último rei Hasmoneu, a harpa do período de Bar Kochva, e o melhor de todos, a tamareira. Esta havia sido usada pelos romanos para representar o povo judeu derrotado, e agora é representada em toda a sua glória na mais alta das moedas, “pela redenção de Sião”. Chupa Titus Flavius!

Curtíssimos esclarecimentos

A moeda de Israel é o Shekel Novo, que em 1985 substituiu o Shekel, com taxa de conversão de 1 Shekel Novo para 1000 Shekels (medida tomada contra a hiperinflação dos anos 1980). Para evitar dizer Shekel Novo o tempo todo, direi simplesmente Shekel, e quando a intenção for o de antes de 1985, direi “Shekel Velho”. “Shekel Antigo” fica para a moeda usada há milênios atrás. AEC e EC significam Antes da Era Comum e Era Comum, respectivamente.

1 agorá

A agorá é a menor divisão do Shekel, valendo um centésimo ou, em outras palavras, centavo. A moeda tem um valor tão baixo que o Banco de Israel decidiu interromper sua produção em 1991.

O nome “agorá” foi proposto pela Academia da Língua Hebraica, já em 1960, quando a Lira Israelense deixou de ser dividida em 1000 prutot (prutá no singular), e precisava-se de um nome para “centavo”. Encontraram “agorá” no versículo 1 Samuel 2:36, onde “agorat kesef” (אֲגוֹרַת כֶּסֶף) é entendido como “um pedaço de prata”.

O desenho do navio foi herdado da moeda de 10 Shkalim Velhos (shkalim é o plural de shekel), uma vez que a taxa de conversão era 1 para mil. Veja a moeda de 10 Shkalim Velhos:

Esta, por sua vez, herdou seu desenho de uma moeda de Herodes Arquelau, governador da Judeia (4 AEC – 6 EC), e sucessor de Herodes. Trata-se de uma galé, ou navio impulsionado por remos. Certamente é uma escolha interessante para o desenho da moeda moderna, dada a relação conturbada entre Herodes, seus filhos, e o povo judeu.

5 agorot

A moeda de 5 centavos também já não é mais produzida, desde 2008.

Esta também é uma “herdeira natural” da moeda de 50 “Shkalim Velhos”.

O desenho é de uma moeda do quarto ano da revolta judaica contra Roma (anos 69-70 EC), onde vemos as quatro espécies da festa de Sukot: no meio estão juntos o lulav (folha de palmeira), hadas (myrtus) e aravá (salgueiro), e de ambos os lados dois etrogim (cidras amarelas = Citrus medica).

Claramente pode-se ler “Shnat Arba” (שנת ארבע) em hebraico, que significa “ano quatro”. A inscrição é feita com a antiga escrita hebraica, aquele que o Rei David conhecia. Sim, leitor, as familiares letras do hebraico que conhecemos hoje são na verdade letras aramaicas, incorporadas ao hebraico durante o Exílio da Babilônia, após a destruição do Primeiro Templo Sagrado em 586 AEC. As duas escritas, hebraica e aramaica conviveram até o século 2 AEC, e a partir de então apenas as letras aramaicas foram usadas. Deu-se uma adaptada pequena a estas letras, para que ganhassem a familiar forma quadrada que conhecemos hoje.

De toda forma, o uso deste alfabeto antigo nas moedas da Grande Revolta provavelmente significa uma “volta às raizes”, e uma nostalgia aos bons e velhos tempos. Vejam abaixo uma tabela comparativa entre o alfabeto hebraico antigo (linha de cima) e o alfabeto hebraico moderno (embaixo). Ambos tem 22 letras, porém 4 letras do alfabeto moderno são diferentes quando usadas na última letra da palavra, portanto a aparente disparidade.

10 agorot

Está é a moeda de menor valor ainda em circulação em Israel.

Ela é a última das moedas que desta lista que herdou seu desenho de uma moeda do Shekel Velho, neste caso, a de 100 Shkalim Velhos, vejam.

Em 1990, Yasser Arafat, líder da Organização para Libertação da Palestina, disse em uma coletiva de imprensa que havia descoberto “a verdadeira cara de Israel e seus planos de expansão”. Segundo ele, a silueta que serve de fundo para a menorá é um mapa da região, incluindo Israel, Jordânia, Síria, Iraque e o norte da Arábia Saudita. Ninguém o levou a sério.

Na verdade, o desenho é de uma moeda antiga danificada, e seu contorno original foi mantido no desenho da nova moeda. Trata-se de uma moeda de prutá do ano 37 AEC, emitida durante o reinado de Antigonus II Mattathias, último rei Hasmoneu de Judá, morto por ordem de Herodes. No fim de seu reinado, quando já entendia que não resistiria à invasão romana, foram emitidas várias moedas com motivos judaicos, para dizer que ele era o rei pertencente à cultura judaica (diferentemente de Herodes, de cultura edomita-judaica-romana). A tentativa era de ganhar um pouco mais de apoio popular e atrair combatentes para ajudá-lo. Não deu certo…

A dinastia dos Hasmoneus chegou ao poder com a revolta dos Macabeus, e reinou por cerca de 100 anos. Este foi o último período (até o século 20) em que os judeus tiveram soberania prolongada de parte da Terra de Israel.

A moeda era feita de bronze, e foram encontradas apenas cerca de 40 delas. Veja abaixo.

Como resposta a Arafat, o então embaixador de Israel na ONU, Benjamin Netanyahu, disse que o símbolo da OLP tinha o mapa do Mandato Britânico embaixo da bandeira palestina, o que significaria que a intenção deles seria criar o estado palestino no lugar de Israel. Touché.

Com a troca de moeda em 1985, o Banco de Israel adotou para si o seguinte logo “expansionista”.

50 agorot

Já comecei mentindo. Não existe moeda de 50 agorot, mas sim uma moeda de meio shekel. Qual a diferença? Veja a imagem abaixo.

Talvez na psique do israelense, a última (e hoje, única) moeda de “centavos” seja a de 10 agorot, já que “meio shekel” claramente pertence à família do “shekel”. A loucura não começou agora. Veja a moeda de meio shekel do ano 2 da grande revolta de Judá contra os romanos (anos 67-68).

Novamente as letras antigas. Do lado esquerdo o desenho de um cálice, com as letras “שב”, representando Shnat B, ou seja, o segundo ano da revolta. Ao redor lemos “חצי השקל”, ou seja, meio shekel. Do lado direito três romãs (uma das sete espécies da Terra de Israel), e em volta se lê “ירושלים הקדושה”, Jerusalém Sagrada. (Podem verificar usando a tabela comparativa entre as letras hebraicas antigas e novas acima, é bom pra cabeça).

Meio shekel era o valor do imposto que todos os israelitas pagavam para a manutenção do antigo templo de Jerusalém. “Cada um daqueles que forem recenseados pagará a metade de um shekel como contribuição devida ao Senhor. (Êxodo 30:13)” Metade de um shekel (מַחֲצִית הַשֶּׁקֶל), e não meio shekel (חצי שקל), pois naquela época shekel era uma unidade de medida de prata, e não uma moeda.

Atenção, mostrei a moeda acima, do ano 2 da revolta, para mostrar um outro exemplo de meio shekel, mas ainda não sabemos de onde veio a harpa da moeda de hoje em dia.

A harpa é uma clara referência ao rei David, que em 1 Samuel 16:23 conta-se que tocava o instrumento para espantar o espírito ruim que baixava em Saul. A palavra usada é kinor (כִּנּוֹר), que no hebraico de hoje significa violino, e não se sabe ao certo qual instrumento era na época, e a interpretação usual é que era uma harpa mesmo. Outras moedas do passado já tiveram o desenho de uma harpa, notadamente a moeda do primeiro ano da revolta de Bar Kochva (132-133 EC). Do lado esquerdo vemos uma folha de palmeira (lulav), e do outro lado da moeda uma harpa de sete cordas, com a inscrição (novamente no script hebraico antigo) “Ano um da redenção de Israel”. Não deu certo… a redenção durou menos de 5 anos.

Como pode-se notar, a harpa da moeda de meio shekel que se usa hoje é assimétrica, e não se parece nem um pouco com a harpa de Bar Kochva. Enrolei muito para contar que o desenho de hoje não veio de uma moeda antiga (pasmem!), mas sim de um “selo de impressão”. (Ganha um sorvete quem souber por que as imagens abaixo estão espelhadas.)

Trata-se de um objeto usado para carimbar a cera ainda mole e assim lacrar uma carta ou documento antigo. O selo foi comprado em uma feira de antiguidades no ano 1978 por Reuben Hecht. A inscrição diz “Para Maadana, filha do rei” (למעדנה בת המלך). Agora sim o uso das letras do hebraico antigo é justificado: estima-se que o selo seja do século 7 AEC do reino de Judá, quando ainda existia o primeiro templo de Jerusalém. Tentou-se descobrir quem é Maadana, e qual rei seria seu pai, mas infelizmente é apenas isto que sabemos… Segundo o arqueólogo israelense Nahman Avigad, este desenho é a melhor estimativa que temos de como se pareceria o “kinor” bíblico. A harpa de 12 cordas é ornada por uma roseta e tem uma moldura de uma corrente de pérolas.

1 shekel

Enquanto todas as moedas de agora (centavo!) são amarelas (meio shekel inclusive), já as de shekel são prateadas.

O desenho é de uma flor de lis, ou em hebraico Shoshan Tzachor (שושן צחור, lírio branco). O lírio branco indica pureza e segundo o profeta Oséias (14:6) tornou-se a flor-símbolo do povo de Israel (Eu serei para Israel como o orvalho. Ele florescerá como o lírio e lançará as suas raízes como o Líbano). A moeda antiga que serviu de inspiração pode ser vista abaixo.

A inscrição na moeda antiga (do lado do pássaro) foi copiada na moeda moderna do lado da flor de lis, e diz Yehud (יהד), usando o antigo alfabeto hebraico. Yehud Medinta (יְהֻד מְדִינְתָּא) é como se chamava em aramaico a província autônoma judaica (yehud) na época do domínio persa. Medinta tem a mesma raiz da palavra hebraica Mediná (hoje significa país, originalmente uma entidade política de qualquer tamanho, regida por uma mesma lei, Din=דין em hebraico). Um outro nome para a província autônoma é Pachavat Yehuda (פחוות יהודה), onde Pachava significa província em persa antigo, e é controlada por um Pecha (daí vem a palavra Paxá em português). Esdras e Neemias foram paxás de Yehuda.

A província judaica existiu de 538 AEC, com Ciro II permitindo aos judeus voltar da Babilônia para Sião, até o ano de 332 AEC, com a conquista de Alexandre, o Grande. Nesta época existia plena liberdade religiosa e de culto (Dario I permitiu a reconstrução do Segundo Templo), mas sem autonomia política, embora eles pudessem emitir moedas de baixo valor, como esta da flor de lis, de 1 óbolo de prata (1/20 do shekel, cerca de 0.6 gramas). A moeda foi emitida aproximadamente em 350 AEC em Jerusalém, e foi encontrada milênios depois em Jericó (uma das 6 grandes cidades da província).

2 shkalim

A moeda de 2 shkalim é apelidada de Shnekel, um portmanteau carinhoso, que junta as palavras “Shnei Shekel” (שני שקל), ou seja, dois shekel. Ela é a mais nova de todas as moedas, tendo sido lançada no final de 2007, e não em 1985, como todas as outras.

O desenho é de dois chifres que transbordam de comida, ou cornos da abundância (cornucópias). Vemos o trigo e uvas, e algo mais que não reconheço. No meio há uma romã, outro símbolo de abundância. O desenho é inspirado em uma moeda de João Hircano I (Yohanan Hyrcanus), filho de Simão (Shimon) e neto de Matatias (Matitiahu), da dinastia dos Hasmoneus (Chashmonaim). Ele reinou entre 134 e 104 AEC.

Os dois chifres juntados pela base são a adaptação judaica deste símbolo helenista tão comum. Anos antes do reinado de João Hircano I, o rei selêucida Demetrius I emitiu uma moeda sua, nos anos 151-150 AEC, onde a deusa da fortuna chamada Tique segura uma cornucópia.

Um pouco mais tarde, nos anos 126-125 AEC, a rainha selêucida Cleópatra Téia emitiu uma moeda com duas cornucópias lado a lado (e seu próprio rosto do outro lado). Certamente João Hircano I tomou para si um símbolo amplamente conhecido pelas pessoas da região (o Império Selêucida era vizinho do reino de Judá).

A festa de Chanuka celebra a vitória dos macabeus sobre os gregos (na verdade, selêucidas), e um de seus valores centrais é a rejeição da cultura helenística pela liderança judaica. A menorá que vimos na moeda de 10 agorot foi emitida pelo último dos reis hasmoneus, para tentar retomar o pouco de cultura judaica que havia sobrado. Ao longo das gerações de hasmoneus, fica claro que a cultura helenística lhes era irresistível. A cornucópia é apenas uma das evidências. Mais claro ainda é perceber seus nomes, todos uma mistura de hebraico com grego: Yohanan (João) Hircano era pai de Yehuda Aristobulus, Matitiahu Antigonos e Alexander Yanai.

5 shkalim

O desenho da moeda de 5 shkalim mostra um capitel de uma coluna proto-jônica, típica da época do primeiro templo. Não se trata de uma apropriação da famosa coluna jônica da cultura grega, que só viria a ser criada no século 6 AEC. Este estilo de colunas com volutas (espirais) era comum por todo o Levante, e podemos ter orgulho desta criação local da Terra de Israel.

As volutas representam a árvore da vida. Vejamos como. Abaixo à esquerda encontramos um desenho assírio em relevo de uma tamareira. Para os assírios, esta árvore representava a abundância agricultural. A tamareira é capaz de se reproduzir assexuadamente, seus clones também sendo capazes de produzir frutos. Da base do tronco nascem ramificações que se afastam da tamareira-mãe, e separam-se uns dos outros por um broto triangular, que é o resto do fronde (folha ramificada) da estação anterior. A árvore cresce um pouco a cada estação, e com a quebra dos brotos triangulares, o tronco ganha a sua típica textura romboidal (com forma de losangos).

Quando a árvore não é cultivada, nascem mais e mais troncos em volta do tronco inicial, todos geneticamente idênticos. Como sempre vemos imagens de tamareiras sozinhas, isto significa que são plantas cultivadas. A facilidade de se clonar uma árvore que tem propriedades desejáveis (muitos frutos de sabor doce, por exemplo) fez com que a tamareira ganhasse a simbologia de árvore da vida. Portanto, a voluta no topo das colunas representa o ciclo de nascimento e renascimento que ocorre na base do tronco, e não a copa, como seria natural de se supor.

Colunas proto-jônicas foram encontradas em escavações em Megido, Hatzor, Ramat Rachel e Jerusalém, entre outras. Nos anos 1960, a arqueóloga britânica Kathleen Kenyon encontrou o capitel abaixo em uma escavação na Cidade de David. O capitel estava quebrado em dois, no meio de outras ruínas que haviam rolado a encosta leste da Cidade de David. Ele pode ser visto no Museu de Israel, em Jerusalém.

10 shkalim

Esta é a moeda de Shekel de mais alto valor, e a que tem o significado mais interessante.

Acabamos de discutir o significado de “árvore da vida” da tamareira, e ela naturalmente serviu como símbolo em várias moedas ao longo da história. No quarto ano da revolta judaica contra Roma (anos 69-70 EC), foi emitida em Jerusalém esta moeda de meio shekel. De um lado vemos a tamareira com duas cestas de tâmaras aos seus pés, e do outro lado uma variação do desenho das quatro espécies de Sukot que já vimos na moeda de 5 agorot.

A inscrição do lado da tamareira está um pouco apagada, mas pode ser melhor identificada nesta moeda abaixo. “Pela redenção de Sião” (legeulat tzion = לגאולת ציון) é o que a liderança judaica desejava, já sabendo que não poderiam resistir à conquista romana.

O general romano Vespasiano tornou-se imperador de Roma em 69 EC, partindo da Judéia para o Egito, e deixando o cerco de Jerusalém a cargo de seu filho Tito. Jerusalém finalmente caiu no verão de 70 EC, e o segundo templo foi destruído. Em comemoração à conquista da Judéia, a seguinte moeda romana foi emitida no ano 71.

De um lado temos o imperador Vespasiano, e do outro lado três figuras: à esquerda vemos o imperador com armadura, à direita a Judéia é representada por uma mulher chorando, e no meio a tamareira. A incrição diz “Judéia Capturada” (ivdaea capta). Não bastava conquistar Jerusalém e destruir o templo, era também preciso jogar sal na ferida!

Eis que, 1915 anos depois, o Estado de Israel decide “devolver na mesma moeda”, literalmente. A tamareira volta em toda a sua glória, e a inscrição diz em hebraico moderno e antigo (para todos entenderem), Pela Redenção de Sião!

Chupa essa tâmara, Titus Flavius Vespasianus!



Fontes: Imagens de todas as moedas de hoje no site do Banco de Israel, clique em “מעות” (moedas).
1 agorá
Imagem da moeda de Herodes Arquelau: Wikipedia.
5 agorot
Imagens das moedas do quarto ano da revolta: Otzar.org, antiquities.org.il, coinsmendy.com.
Tabela comparativa das escritas judaicas antiga e moderna: safa-ivrit.org.
10 agorot
História sobre Arafat: Ynet.
Imagem da moeda antiga: danielventura.wikia.com
50 agorot
Imagem da moeda do ano 2 da revolta: Wikipedia.
Moeda da harpa: winners-auctions.com.
Imagem do selo de Maadana: sheqel.info, echad.info (página 15).
Informações sobre o selo de Maadana: books.google.com, ancientlyre.com, Wikipedia.
1 shekel
Informações sobre a flor de lis: books.google.com.
Imagem da moeda antiga: tsel.org.
Informações sobre Yehud Medinta: Wikipedia.
2 shkalim
Imagem da moeda de João Hircano I: Wikipedia.
Imagem da moeda da deusa Tique: coinworld.com.
Imagem da moeda de Cleópatra Téia: Wikipedia.
5 shkalim
Informações e imagens sobre a tamareira: academia.edu (artigo interessante!).
Imagem do capitel de pedra: cityofdavid.org.il.
10 shkalim
Imagens da moeda antiga: press.khm.at, artportal.co.il.
Imagens da moeda da Judéia Capturada: press.khm.at.